ROCK N’ CONTENCIOSO: O PROCESSO ADMINISTRATIVO AO
SOM DE GUNS N’ ROSES
Para retratar uma realidade
tão heterogénea e multiforme, nada melhor que lhe imprimir um pouco de
musicalidade. A evolução do Contencioso Administrativo ao longo dos séculos
teve pouco de harmonia e melodia: foi, ao invés, uma experiência disfuncional,
explosiva e, até, destrutiva. Teve os seus altos e baixos, as suas paixões e
ódios, e tanto alimentou expectativas como as defraudou. Se me é permitido o
paralelismo, o Contencioso Administrativo está para o universo jurídico como os
Guns N’ Roses estão para o mundo do Rock: inicialmente constrangidos pelos seus
medos e receios, os Guns libertaram-se das suas amarras e ascenderam ao
estrelato, retratando sem pudor e de forma genuína os vícios da sociedade do
seu tempo. Mas à semelhança do Processo Administrativo, também a maior banda de
Rock do mundo viveu assombrada pelos fantasmas do seu passado e não soube
conciliar os seus diferentes egos. Viveu numa realidade ficcional, em que as
distracções e os vícios ocultavam as angústias internas de cada um dos seus membros.
Para a posteridade ficam as palavras, as linhas e os versos que contam mais que
uma história: pintam todo o quadro de uma vida de excessos e contradicções, mas
em que nunca se desiste de buscar a paz interior.
É ao legado dos Guns N´ Roses
que recorro para trazer ritmo à história do Contencioso Administrativo.
I. “They
won´t touch me / ‘Cause I’ve got something I been buildin’ up inside for so
long (…) They’re out to get me/ But they won’t catch me” in
“Out ta get me”, Appetite for Destruction, 1987
Na génese do Contencioso
Administrativo de matriz continental europeia está uma visão deturpada e
subversiva do princípio da separação de poderes. Conquanto nos idos da
Revolução Francesa de 1789 este princípio prefigurasse um dos estandartes dos
revolucionários, a verdade é que foi a sua invocação que legitimou a proibição
dos tribunais judiciais de se imiscuírem na actividade da Administração,
entendendo que Administrar e Julgar são duas funções do Estado que operam à
margem e independentemente uma da outra. A justiça administrativa só podia
assim nascer no contexto da própria Administração, a quem era cometida, em
regime de exclusividade, a tarefa de controlar a sua própria actividade. Os
tribunais (“they”) não conseguiam tocar na Administração, que escapava ilesa às
investidas de autoridades exteriores e fazia justiça com as suas próprias mãos.
Subjacente a este paradigma
está uma concepção de Estado que radica numa unificação e centralização dos
poderes, para evitar, por um lado, a pulverização e a dissipação dos poderes
públicos e que, por outro, no intuito de garantir a liberdade e os direitos
individuais dos cidadãos, recorre à máxima – aqui meramente formal – da
separação de poderes. É esta realidade compromissória, materializada no Estado
liberal e democrático pós-Revolução, que gera a contradição de existir um Poder
Judicial subtraído à faculdade de fiscalizar os actos praticados pela
Administração. Recorrendo à síntese de MONSTEQUIEU, exemplar de um sentimento
de desconfiança em face dos tribunais, os juízes nada mais eram do que “as
bocas que pronunciam as palavras da lei”, pelo que lhes estava vedado a
imposição de qualquer entrave à Administração.
Assiste-se, por conseguinte,
na expressão de NIGRO, à criação de um “um juiz doméstico”, em que são os
próprios órgãos da Administração activa que julgam da legalidade da actuação
dos corpos e agentes administrativos. É do labor destas entidades que nasce um
complexo normativo privativo da Administração, conducente à atribuição de pouvoirs exorbitants (HAURIOU)
definidores de um direito especial – “built
inside for so long”- norteado para proteger a Administração.
É neste seguimento que é
criado o Conselho de Estado, “corpo meio-administrativo, meio judiciário” (NAPOLEÃO
BONAPARTE) que ainda que fosse um órgão da Administração consultiva, tinha
competência também em matéria de resolução de litígios administrativos através
da emissão de pareceres que ficavam dependentes da homologação do Chefe de
Estado.
Vai ser a produção jurídica do
Conselho de Estado que vai ditar a transição do modelo de “justiça reservada”
para o modelo de “justiça delegada” em 1872, caracterizado pela definitividade
das decisões do Conselho de Estado através de um fenómeno de “delegação de poderes”
do Executivo. Aquele não perde, contudo, a sua natureza enquanto órgão da
Administração, sendo que as suas decisões são encaradas como “recursos de
apelação”.
II.
“She’s got a smile that it seems to me/ reminds me of
childhood memories (…)/ Oh, oh, oh Sweet Child O’ Mine” in
“Sweet Child O’ Mine”, Appetite for Destruction, 1987
Em 1873 surge o momento que é
considerado por muitos como sendo o da autonomização científica, dentro das disciplinas
jurídicas, do Direito Administrativo. Tristes são, porém, as circunstâncias em
que esta operou. O caso era atinente a uma jovem criança de 5 anos – Agnés
Blanco – que fora atropelada por um vagão de serviço público de tabaco, sendo que
nesse seguimento os pais procuraram obter, junto de duas entidades – Tribunal
de Bordéus e Conselho de Estado - uma indemnização que reparasse os prejuízos
que haviam sofrido com a situação. Ambas se declararam incompetentes para
dirimir o litígio por nele intervir a Administração, sendo que a situação não
era directamente disciplinada pelo Código Civil, por se tratar de um serviço
público, campo subtraído ao foro das relações entre particulares.
Agnés Blanco tornou-se assim a
“Poor Child O’ Mine” do Direito
Administrativo: foi neste episódio traumático que se evidenciou o propósito
quase exclusivo de preservação e defesa da ordem legal objectiva, relativizando
– ou, como neste caso, negando – a defesa dos direitos dos particulares. As “childhood memories” do Direito
Administrativo e da sua veia processual são assim marcadas por uma obediência
cega e estreita à legalidade, também esta entendida em termos bastante
simplistas, desconsiderando a eficácia e projecção das decisões da
Administração na esfera jurídica dos particulares, no contexto de um Direito
privativo e exclusivo de certas entidades que gozavam de um estatuto de
privilégio.
III.
“All we need is just a little patience” in
Patience, GN’R Lies, 1989
Entre os finais do séc. XIX e
o despontar do séc. XX surge um novo paradigma do Contencioso Administrativo,
que vai – para alguns de forma verdadeiramente “milagrosa” – atingir o estádio
da jurisdicionalização. Para trás fica uma visão redutora e formal do Direito
Administrativo, encarado como sistema de normas destinadas a proteger a
Administração, vista como poder do Estado e beneficiária de um regime de
autotutela das suas actuações.
No caso francês, é o
prestigiado labor do Conselho de Estado em matéria de resolução de litígios
administrativos que vai determinar a sua paulatina jurisdicionalização e
autonomia. Não é num dado momento histórico que se dá a ruptura com o anterior
sistema, mas sim através da sucessão de uma pluralidade de acontecimentos: o
Acórdão Cadot, em que o Conselho de
Estado é definido como “primeira instância” do Contencioso Administrativo; a
Reforma de 1953, que transforma os antigos Conselhos de Prefeitura em Tribunais
Administrativos; a reforma de 1987, que cria uma “instância intermédia”, os
“Cours Administratives d’ Appel” e ainda a afirmação da “Secção Contenciosa”
por contraposição à “Secção Administrativa” no seio do Conseil d’ État.
Paralelamente, as concepções
autoritárias do Direito Administrativo – tributárias, em larga escala, do
pensamento de MAYER e HAURIOU – vão sendo ultrapassadas em virtude do
progressivo enraizamento da lógica relacional que passa a presidir aos meios de
actuação da Administração que, no quadro de um Estado Social de Direito –
portanto, de matriz previdencial- diversifica as suas formas de actividade.
Este “Estado de Administração” (KELSEN/SCHMIDT) é um Estado de prestação de
bens e serviços, onde imperam as relações bilaterais e onde se reconhecem os
particulares enquanto tais e não como “administrados”; é um Estado do
quotidiano, omnipresente, em que entidades administrativas exercem o seu poder
discricionário numa lógica de subordinação à ordem jurídica tomada na sua
globalidade, impregnando a ideia de realização imediata do Direito; é um Estado
descentralizado e desconcentrado, pronto para acudir às múltiplas necessidades
sociais nos vários domínios, apostando numa crescente especialização; por fim,
é um modelo de Estado em que se assiste à emergência da relação jurídica como
novo epicentro dogmático do Direito Administrativo, capaz de retratar plenamente
o relacionamento entre Administração e particulares.
IV.
“Oh I need you/ This time” in
Patience, GN’R Lies, 1989
Hodiernamente assiste-se à
reafirmação de um modelo de Contencioso Administrativo plenamente
jurisdicionalizado – em que aos tribunais administrativos, integrados no Poder
Judicial qua tale, são atribuídos
poderes de controlo sobre a Administração – e de matriz eminentemente
subjectiva, afecta à protecção integral e efectiva dos direitos dos
particulares no quadro de um Estado de Direito.
Umbilicalmente associado a
este paradigma está a progressiva constitucionalização do Contencioso
Administrativo, visto cada vez mais como um instrumento de realização dos
princípios e valores constitucionais e como realidade incapaz de se
auto-fundamentar, carecendo para tanto de uma referência axiológica superior.
Como sublinha o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA, o Direito Constitucional e o
Direito Administrativo “não podiam passar um sem o outro” - assim como em Patience Axl Rose não podia passar sem a sua esposa Erin Everly – ao
ponto de se poder falar de uma “dupla dependência”: uma dependência
constitucional do Direito Administrativo e uma dependência administrativa do
Direito Constitucional. No que tange à primeira, parte-se da asserção de que o
Direito Processual Administrativo prefigura, nas palavras de HABERLE, “Direito
Constitucional concretizado”, sendo aos tribunais administrativos cometida a
tarefa de interpretar e aplicar as regras e princípios constitucionais aos
litígios que são chamados a dirimir; por seu turno, a dependência
administrativa do Direito Constitucional materializa-se na afirmação de que os
direitos fundamentais no foro processual, de cariz instrumental, são uma
condição inelutável de realização e tutela de todos os outros direitos
fundamentais substantivos. Daí que a pretensão de efectividade que inere à Lei
Fundamental implique a existência e um adequado funcionamento de um aparelho
jurisdicional que, policiando a Administração, obste à violação dos direitos
dos particulares.
A “Constituição
Administrativa” incorpora agora os vectores fundamentais em matéria de
organização, actividade e processo administrativo, dando origem a uma relação
dialogante de natureza triangular entre Administração, Tribunais e
Constituição.
V.
“With all the changing seasons /Of my life/ Maybe I’ll
get it right next time” in Estranged, Use Your Illusion I, 1991
Em jeito de conclusão deste
breve cotejo histórico de evolução do Contencioso Administrativo, cumpre apenas
fazer uma breve referência à actual configuração do modelo português.
A Lei Fundamental não hesita
em enquadrar os Tribunais Administrativos no âmbito do Poder Judicial (artgº.
209º/1/b-)), determinando que a estes compete o “julgamento das acções e recursos
contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas e fiscais” (artgº 212º/3). Consagra-se um
modelo subjectivo, através do reconhecimento aos particulares – e não “administrados”
como arcaicamente continua a designar o legislador constituinte – de uma tutela
jurisdicional plena e efectiva dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos através da possibilidade de impugnar os actos administrativos
lesivos daqueles, e independentemente da sua forma (artgº. 268º/4).
Salvaguarda-se outrossim a impugnabilidade de normas administrativas com
eficácia externa lesivas daqueles direitos ou interesses legalmente protegidos
(artgº. 268º/5). No coração deste sistema está a garantia constitucional de
acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artgº. 20º), que actua como
um poderoso mecanismo de defesa e efectividade dos direitos fundamentais
perante as ablações das entidades públicas.
Em face deste quadro axiológico veiculado pela Constituição –
que, sublinhe-se, define um Contencioso Administrativo subjectivo e pleno –
causa alguma perplexidade como é que foi preciso esperar até 2004 para que o
comando constitucional adquire-se operacionalidade. Acontece que no plano do
direito ordinário o legislador, até àquela data, permaneceu amarrado a um
esquema quase privativo de Justiça Administrativa, em que o controlo era
objectivo e limitado e de “quase” denegação dos direitos dos particulares. A “reinvenção”
do Contencioso Administrativo teria inelutavelmente de passar por um diálogo
activo com a Lei Fundamental, a fim de adequar a praxis àquilo que impunha o texto constitucional.
O balanço da Reforma operada em 2004 não pode deixar de ser
globalmente positivo, conquanto seja mister diferenciar o mérito dos dois
diplomas dela saídos – o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e
Fiscais (CPTA) e o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Ao
primeiro louva-se o estabelecimento de um sistema de meios processuais
principais, cautelares e executivos bastante tutelar e abrangente, fazendo
vénia à imposição constitucional. Quanto ao segundo, repudia-se nomeadamente a
manutenção de uma competência de julgamento em primeira instância do Supremo
Tribunal Administrativo quanto às actuações do Governo e do Presidente da
República, entre outros (artgº. 24º ETAF), bem como a manutenção de uma “organização
judiciária complexa e arcaica, herdada do passado”.
Em suma, muito se passou e muito está ainda por se passar. O
Processo Administrativo emancipou-se, modernizou-se e evoluiu. Mas ainda não
atingiu o estádio da optimização, o que é próprio de uma realidade em constante
e permanente evolução. Maybe “they”
will get it right next time…
NOTA BIBLIOGRÁFICA:
-
VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as
Acções no Novo Processo Administrativo”, pág. 9- 241; 2ª Edição
-
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “A Justiça Administrativa”, pág. 53-79;
9ªEdição
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