Acto
Administrativo Inimpugnável – Saudação a um legislador “decidido”
Marco determinante no trilhar da plena jurisdicionalização
do Contencioso Administrativo, o artgº. 38º do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (CPTA) versa sobre uma série de conteúdos que, durante várias
décadas, deliciaram a doutrina e jurisprudência administrativistas. Surgindo no
âmbito do título II do Código – atinente à acção administrativa comum – a norma
em apreço espelha o propósito de progressiva subjectivização e abertura do
Processo Administrativo aos particulares, erradicando velhos dogmas que,
fantasmagoricamente, ainda pairavam no foro da Justiça Administrativa. Se me é
permitida a ironia, foi portanto um legislador “decidido” aquele que
regulamentou a realidade do acto administrativo inimpugnável, sujeitando-o a
apreciação jurisdicional e tornando-o passível de um juízo de ilegalidade. Sem
mais demoras, preceitua o artgº. 38º CPTA:
“1- Nos casos em que lei substantiva o admita,
designadamente no domínio da responsabilidade civil da Administração por actos
administrativos ilegais, o tribunal pode conhecer, a título incidental, da
ilegalidade de um acto administrativo que já não possa ser impugnado.
2- Sem prejuízo do disposto no número anterior, a acção
administrativa comum não pode ser utilizada para obter efeito que resultaria da
anulação de acto inimpugnável.”
1. 1. A relação além do acto: a relação jurídica
administrativa como coração do Processo Administrativo
Como se não bastasse como
justificação o recurso à norma constitucional do artgº. 212º/3 CRP – nos termos
da qual é da competência dos tribunais administrativos e fiscais “(…) o
julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os
litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – o artgº.
38º CPTA presta um inelutável contributo à causa da relação jurídica como novo
epicentro do Direito Administrativo, retratando nomeadamente que esta se
desenvolve não apenas nos planos procedimental e substantivo, mas também outrossim
no domínio processual, dando corpo a um relacionamento duradouro e estável
entre a Administração e os particulares.
Para se ter ideia das
insuficiências e fraquezas do acto administrativo, a preclusão da possibilidade
de este ser impugnado contenciosamente não invalida a continuidade do
relacionamento dialéctico entre os sujeitos da relação jurídica, pelo que o
Contencioso Administrativo deve, cada vez mais, ser perspectivado como “um
juízo sobre a relação jurídica administrativa” na sua totalidade, não devendo o
juiz ser mais visto como um mero espectador ou destinatário de uma “fotografia
que retrata relações em movimento”: deve, ao invés, apreciar, com completude e
plenitude de poderes, a relação jurídica administrativa no seu todo. O acto
administrativo, à semelhança das demais formas de actuação da Administração
Pública, encontra-se instrumentalizado à realização da função administrativa
enquanto actividade de satisfação das necessidades colectivas historicamente
situadas. Não existe mais, por conseguinte, uma hierarquia piramidal no que
toca às formas de actuação, optando-se, ao invés, por uma ideia de “circularidade”
ou “igualdade de meios”: todos se encontram em pé igualdade, sendo o juízo de
idoneidade (relativa) proferido consoante os específicos interesses
jurídico-administrativos que se façam sentir na concreta relação jurídica
administrativa em desenvolvimento.
1. 2. A
ideia de “caso decidido” e a sua expurgação da ordem jurídica
Segundo a doutrina administrativista
tradicional – liderada por MARCELLO CAETANO – a falta de impugnação contenciosa
de um acto administrativo dentro do prazo respectivo, legalmente prescrito,
determinava que, no plano substantivo, aquele acto adquiria um “(…) carácter de
incontestabilidade análogo ao do caso julgado”, determinado pela “perda do
direito de impugnação contenciosa”. Em consequência da falta de impugnação
contenciosa, o acto “inimpugnado” era convalidado ou saneado, passando a ser
plenamente válido e legal em termos materiais – ou seja, precludida a
possibilidade de o particular lesado o atacar, tornava-se “inimpugnável” e,
consequentemente, insusceptível de apreciação jurisdicional. Numa palavra, o
acto administrativo inimpugnável fazia, em termos similares aos das sentenças
judiciais, “caso decidido”.
Subjacente a esta perspectiva
está o entendimento de que os prazos do processo jurisdicional são “contínuos,
peremptórios e improrrogáveis”, não podendo, directa ou indirectamente, ser
ampliados, o que constituía um imperativo de segurança e certeza jurídicas que
inerem às construções positivistas. Como excepção a esta característica da “irrecorribilidade”
- ainda dentro da velha lógica do recurso de anulação – surgiam apenas as
situações em que se verificasse que “os termos do acto eram de tal forma
confusos ou ambíguos que não permitiam o conhecimento da vontade manifestada,
sendo indispensável aclaração”, pois
antes deste acto “não se sabe o que impugnar ou mesmo se há matéria para
impugnação”.
Ora esta construção não é, na
actualidade, passível de aceitação. Não só a sua premissa fundamental – a alegada
similitude entre a função administrativa e a função jurisdicional – é infundamentada,
como as consequências e efeitos que advém dessa assimilação são particularmente
nefastos para a paulatina subjectivização de um Contencioso Administrativo
constitucionalmente funcionalizado à tutela plena e efectiva dos direitos dos
particulares. Senão veja-se:
A) A) A
pretensa identidade entre as funções administrativa e jurisdicional – enquanto funções
“secundárias” do Estado – e dos seus actos é falaciosa. Conquanto se repute as
sentenças judiciais como critérios de resolução de litígios jurídicos-materiais
e ao acto administrativo fosse tradicionalmente associada uma ideia de
definição material do direito aplicável ao particular, essa concepção carece de
actualização. O acto administrativo não desempenha mais, exclusivamente, uma
tarefa de estabilização de situações jurídicas de forma unilateral e autoritária
– ou, se preferirmos, não reveste sempre a característica da definitividade –
nem esta constitui mais um requisito de admissibilidade da sua impugnação
contenciosa (atenda-se, categoricamente, ao artgº. 268º/4 CRP). Não é mais,
pois, o instrumento predilecto de realização de um Direito privativo e
estatutário da Administração, subtraído ao controlo da Justiça. Quanto ao seu
conteúdo, o acto administrativo assume, no contexto jurídico-administrativo dos
nossos dias, uma geometria variável, podendo actuar simultaneamente como definição
do direito aplicável a uma situação individual e concreta, como um mecanismo
atributivo de direitos, como expediente procedimental para uma correcta
harmonização de interesses. Nesta esteira, basta para tanto atentar na
amplitude com que o legislador do Procedimento Administrativo definiu o acto
administrativo (artgº. 120 CPA) para constatar que o seu conteúdo não prefigura
uma realidade pré-determinada ou parametrizada. Ademais, a tarefa de Julgar e a
tarefa de Administrar são funcionalmente distintas, regidas por regras e
princípios próprios e destrinçáveis no enquadramento político-constitucional,
pelo que é pouco rigoroso buscar uma analogia entre ambas;
A) B) A
visão tradicional confunde, em termos ilógicos, o plano substantivo com a
realidade processual. Nem se argumente, como faz FREITAS DO AMARAL, que o acto
administrativo anulável, por ser menos desvalioso que o acto nulo, “é sanável (…)
se não for objecto de impugnação contenciosa pelo interessado”, acabando por se
transformar num “acto inatacável”. É certo que o artgº. 38º/2 CPTA estabelece
que não se pode obter, com o conhecimento incidental da ilegalidade do acto
inimpugnável, o efeito que resultaria da sua anulação, ou seja, a sua erradicação
retroactiva da ordem jurídica. Mas também não é menos acertado proclamar que o
acto administrativo não atacado, conquanto revista uma força e estabilidade
próprias, não produz um efeito substantivo de cariz convalidatório, permitindo
um “regresso ao Direito” de um acto anteriormente inválido: assim sendo, a
preclusão de um prazo de impugnação jurisdicional de um acto inválido tem a sua
eficácia circunscrita ao foro processual, o que se traduz na impossibilidade de
o particular lesado com aquele fazer-se valer da acção administrativa especial
para atacar o acto lesivo e obter a sua anulação.
E ainda
que se admita que os efeitos processuais possam, em maior ou menor medida,
influir sobre o regime jurídico-material dos actos administrativos – dado que
entre uma relação jurídica e outra (substantiva e processual) há um nexo de
continuidade – não se pode olvidar que o Processo está funcionalizado a
solucionar uma situação de “crise” no plano substantivo que opõe a
Administração e os particulares, pelo que a dimensão processual do
relacionamento nunca pode postergar os critérios que regem a sua realidade material.
Solução adversa seria propugnar a manutenção e solidificação ad aeternum de uma realidade ajurídica,
que vem denegar o acesso à Justiça Administrativa aos particulares lesados nos
seus direitos, ainda que tenham feito um mau uso dos meios processuais que lhes
são disponibilizados. Reforça-se,
através do controlo incidental da ilegalidade de um acto inimpugnável, o
propósito de uma tutela jurisdicional plena e efectiva.
Qual o sentido útil portanto
do nº2 do artgº. 38º quando este preceitua que “a acção administrativa comum
não pode ser utilizada para obter o efeito que resultaria da anulação do acto
inimpugnável”?
Prima
facie, as vantagens que para o particular poderiam decorrer do
controlo jurisdicional, a título incidental, de um acto administrativo
insusceptível de impugnação contenciosa só seriam integralmente satisfeitas se
o juiz, com plenitude de poderes, pudesse destruir, com eficácia ex tunc, actuação administrativa danosa.
Tal constituiria, porém, o efeito normal de uma sentença (constitutiva) de
anulação, proferida no âmbito de acção administrativa especial, o que
introduziria uma confusão – suplementar – entre os dicotómicos meios
processuais. Considero, a este respeito, certeira a posição de VIERIA DE
ANDRADE: ainda que não se atinjam os efeitos típicos decorrentes da anulação do
acto – obviando assim uma eventual manipulação de meios processuais – pode o
tribunal contudo, neste conhecimento acidental, “pôr em causa os seus efeitos
atípicos, complementares, futuros ou colaterais”.
É mister referir que este
Professor elabora a sua posição raciocinando ainda no quadro do alegado “caso
decidido” – posição já refutada – mas entendo, ainda assim, dela retirar algum conteúdo
útil quanto ao efeito da sentença. Ao atingir com esta, nomeadamente, os
efeitos futuros do acto ilegal, o Tribunal afasta qualquer dúvida acerca de uma
eventual eficácia convalidatória decorrente da postergação dos prazos de
impugnação contenciosa: ainda que fiquem solidificados os efeitos até aí
produzidos – prestando homenagem ao valor da segurança jurídica – tal não
invalida que o tribunal intervenha ulteriormente e afaste a eficácia do acto
para o futuro, pondo assim termo a um facto complexo de lesão das posições
subjectivas dos particulares. Obsta-se assim, que uma situação de contrariedade
ao Direito se prolongue para o futuro ou mesmo ad aeternum.
Como reintegrar a esfera
jurídica dos particulares lesados pela manutenção dos efeitos do acto ilegal?
1. 3. A
autonomização do pedido de indemnização
No plano substantivo, a norma
do artgº. 38º/1 revela-se de importância primacial por proceder igualmente ao
recorte funcional do pedido de indemnização e à sua autonomização em face dos
demais, pondo termo a uma situação de disfunção legislativa herdada do Direito
anterior – que fazia depender a existência do dever de indemnização, que
impendia sobre as autoridades administrativas, da anterior propositura pelo
particular lesado do recurso contencioso de anulação do acto administrativo
ocasionado do dano (artgº. 7 D.L. 48 051). Em vez de o problema ser equacionado
de uma lógica estritamente processualista – em que a impugnação contenciosa do
acto administrativo danoso é um pressuposto da acção de responsabilidade civil
pública – atende-se primacialmente agora a uma lógica substancialista, máxime desde que a Lei nº 67/2007 passou
a dispor, no seu artgº. 4º que “quando o comportamento culposo do lesado tenha
concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados, designadamente
por não ter sido utilizado a via processual adequada à eliminação do acto
jurídico lesivo, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas
de ambas as partes e as consequências que delas tiverem resultado, se a
indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida, ou mesmo excluída”.
O critério determinante é pois
um juízo assente numa “concorrência de culpas” (RUI MEDEIROS), em que a conduta
lesiva da Administração deve ser balanceada com a leveza e negligência
processual do particular, cuja intensidade, maior ou menor, se repercutirá
directamente no quantum indemnizatório devido pela Administração àquele (se houver lugar a indemnização).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
VASCO PEREIRA DA SILVA, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", pág. 439 - 443; 552 - 555;
MARCELLO CAETANO, "Manual de Direito Administrativo", pág. 1368 - 1369;
CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "A Justiça Administrativa", pág. 180 e 198;
DIOGO FREITAS DO AMARAL, "Curso de Direito Administrativo", pág. 445 e 446
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