segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Acto Administrativo Inimpugnável - Saudação a um legislador "decidido"

Acto Administrativo Inimpugnável – Saudação a um legislador “decidido”

Marco determinante no trilhar da plena jurisdicionalização do Contencioso Administrativo, o artgº. 38º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) versa sobre uma série de conteúdos que, durante várias décadas, deliciaram a doutrina e jurisprudência administrativistas. Surgindo no âmbito do título II do Código – atinente à acção administrativa comum – a norma em apreço espelha o propósito de progressiva subjectivização e abertura do Processo Administrativo aos particulares, erradicando velhos dogmas que, fantasmagoricamente, ainda pairavam no foro da Justiça Administrativa. Se me é permitida a ironia, foi portanto um legislador “decidido” aquele que regulamentou a realidade do acto administrativo inimpugnável, sujeitando-o a apreciação jurisdicional e tornando-o passível de um juízo de ilegalidade. Sem mais demoras, preceitua o artgº. 38º CPTA:

“1- Nos casos em que lei substantiva o admita, designadamente no domínio da responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais, o tribunal pode conhecer, a título incidental, da ilegalidade de um acto administrativo que já não possa ser impugnado.
2- Sem prejuízo do disposto no número anterior, a acção administrativa comum não pode ser utilizada para obter efeito que resultaria da anulação de acto inimpugnável.”

1.       1. A relação além do acto: a relação jurídica administrativa como coração do Processo Administrativo

Como se não bastasse como justificação o recurso à norma constitucional do artgº. 212º/3 CRP – nos termos da qual é da competência dos tribunais administrativos e fiscais “(…) o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – o artgº. 38º CPTA presta um inelutável contributo à causa da relação jurídica como novo epicentro do Direito Administrativo, retratando nomeadamente que esta se desenvolve não apenas nos planos procedimental e substantivo, mas também outrossim no domínio processual, dando corpo a um relacionamento duradouro e estável entre a Administração e os particulares.

Para se ter ideia das insuficiências e fraquezas do acto administrativo, a preclusão da possibilidade de este ser impugnado contenciosamente não invalida a continuidade do relacionamento dialéctico entre os sujeitos da relação jurídica, pelo que o Contencioso Administrativo deve, cada vez mais, ser perspectivado como “um juízo sobre a relação jurídica administrativa” na sua totalidade, não devendo o juiz ser mais visto como um mero espectador ou destinatário de uma “fotografia que retrata relações em movimento”: deve, ao invés, apreciar, com completude e plenitude de poderes, a relação jurídica administrativa no seu todo. O acto administrativo, à semelhança das demais formas de actuação da Administração Pública, encontra-se instrumentalizado à realização da função administrativa enquanto actividade de satisfação das necessidades colectivas historicamente situadas. Não existe mais, por conseguinte, uma hierarquia piramidal no que toca às formas de actuação, optando-se, ao invés, por uma ideia de “circularidade” ou “igualdade de meios”: todos se encontram em pé igualdade, sendo o juízo de idoneidade (relativa) proferido consoante os específicos interesses jurídico-administrativos que se façam sentir na concreta relação jurídica administrativa em desenvolvimento.

1.       2. A ideia de “caso decidido” e a sua expurgação da ordem jurídica

Segundo a doutrina administrativista tradicional – liderada por MARCELLO CAETANO – a falta de impugnação contenciosa de um acto administrativo dentro do prazo respectivo, legalmente prescrito, determinava que, no plano substantivo, aquele acto adquiria um “(…) carácter de incontestabilidade análogo ao do caso julgado”, determinado pela “perda do direito de impugnação contenciosa”. Em consequência da falta de impugnação contenciosa, o acto “inimpugnado” era convalidado ou saneado, passando a ser plenamente válido e legal em termos materiais – ou seja, precludida a possibilidade de o particular lesado o atacar, tornava-se “inimpugnável” e, consequentemente, insusceptível de apreciação jurisdicional. Numa palavra, o acto administrativo inimpugnável fazia, em termos similares aos das sentenças judiciais, “caso decidido”.

Subjacente a esta perspectiva está o entendimento de que os prazos do processo jurisdicional são “contínuos, peremptórios e improrrogáveis”, não podendo, directa ou indirectamente, ser ampliados, o que constituía um imperativo de segurança e certeza jurídicas que inerem às construções positivistas. Como excepção a esta característica da “irrecorribilidade” - ainda dentro da velha lógica do recurso de anulação – surgiam apenas as situações em que se verificasse que “os termos do acto eram de tal forma confusos ou ambíguos que não permitiam o conhecimento da vontade manifestada, sendo indispensável  aclaração”, pois antes deste acto “não se sabe o que impugnar ou mesmo se há matéria para impugnação”.

Ora esta construção não é, na actualidade, passível de aceitação. Não só a sua premissa fundamental – a alegada similitude entre a função administrativa e a função jurisdicional – é infundamentada, como as consequências e efeitos que advém dessa assimilação são particularmente nefastos para a paulatina subjectivização de um Contencioso Administrativo constitucionalmente funcionalizado à tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares. Senão veja-se:


A)    A)           A pretensa identidade entre as funções administrativa e jurisdicional – enquanto funções “secundárias” do Estado – e dos seus actos é falaciosa. Conquanto se repute as sentenças judiciais como critérios de resolução de litígios jurídicos-materiais e ao acto administrativo fosse tradicionalmente associada uma ideia de definição material do direito aplicável ao particular, essa concepção carece de actualização. O acto administrativo não desempenha mais, exclusivamente, uma tarefa de estabilização de situações jurídicas de forma unilateral e autoritária – ou, se preferirmos, não reveste sempre a característica da definitividade – nem esta constitui mais um requisito de admissibilidade da sua impugnação contenciosa (atenda-se, categoricamente, ao artgº. 268º/4 CRP). Não é mais, pois, o instrumento predilecto de realização de um Direito privativo e estatutário da Administração, subtraído ao controlo da Justiça. Quanto ao seu conteúdo, o acto administrativo assume, no contexto jurídico-administrativo dos nossos dias, uma geometria variável, podendo actuar simultaneamente como definição do direito aplicável a uma situação individual e concreta, como um mecanismo atributivo de direitos, como expediente procedimental para uma correcta harmonização de interesses. Nesta esteira, basta para tanto atentar na amplitude com que o legislador do Procedimento Administrativo definiu o acto administrativo (artgº. 120 CPA) para constatar que o seu conteúdo não prefigura uma realidade pré-determinada ou parametrizada. Ademais, a tarefa de Julgar e a tarefa de Administrar são funcionalmente distintas, regidas por regras e princípios próprios e destrinçáveis no enquadramento político-constitucional, pelo que é pouco rigoroso buscar uma analogia entre ambas;


A)    B)    A visão tradicional confunde, em termos ilógicos, o plano substantivo com a realidade processual. Nem se argumente, como faz FREITAS DO AMARAL, que o acto administrativo anulável, por ser menos desvalioso que o acto nulo, “é sanável (…) se não for objecto de impugnação contenciosa pelo interessado”, acabando por se transformar num “acto inatacável”. É certo que o artgº. 38º/2 CPTA estabelece que não se pode obter, com o conhecimento incidental da ilegalidade do acto inimpugnável, o efeito que resultaria da sua anulação, ou seja, a sua erradicação retroactiva da ordem jurídica. Mas também não é menos acertado proclamar que o acto administrativo não atacado, conquanto revista uma força e estabilidade próprias, não produz um efeito substantivo de cariz convalidatório, permitindo um “regresso ao Direito” de um acto anteriormente inválido: assim sendo, a preclusão de um prazo de impugnação jurisdicional de um acto inválido tem a sua eficácia circunscrita ao foro processual, o que se traduz na impossibilidade de o particular lesado com aquele fazer-se valer da acção administrativa especial para atacar o acto lesivo e obter a sua anulação.
E ainda que se admita que os efeitos processuais possam, em maior ou menor medida, influir sobre o regime jurídico-material dos actos administrativos – dado que entre uma relação jurídica e outra (substantiva e processual) há um nexo de continuidade – não se pode olvidar que o Processo está funcionalizado a solucionar uma situação de “crise” no plano substantivo que opõe a Administração e os particulares, pelo que a dimensão processual do relacionamento nunca pode postergar os critérios que regem a sua realidade material. Solução adversa seria propugnar a manutenção e solidificação ad aeternum de uma realidade ajurídica, que vem denegar o acesso à Justiça Administrativa aos particulares lesados nos seus direitos, ainda que tenham feito um mau uso dos meios processuais que lhes são disponibilizados. Reforça-se, através do controlo incidental da ilegalidade de um acto inimpugnável, o propósito de uma tutela jurisdicional plena e efectiva.

Qual o sentido útil portanto do nº2 do artgº. 38º quando este preceitua que “a acção administrativa comum não pode ser utilizada para obter o efeito que resultaria da anulação do acto inimpugnável”?

Prima facie, as vantagens que para o particular poderiam decorrer do controlo jurisdicional, a título incidental, de um acto administrativo insusceptível de impugnação contenciosa só seriam integralmente satisfeitas se o juiz, com plenitude de poderes, pudesse destruir, com eficácia ex tunc, actuação administrativa danosa. Tal constituiria, porém, o efeito normal de uma sentença (constitutiva) de anulação, proferida no âmbito de acção administrativa especial, o que introduziria uma confusão – suplementar – entre os dicotómicos meios processuais. Considero, a este respeito, certeira a posição de VIERIA DE ANDRADE: ainda que não se atinjam os efeitos típicos decorrentes da anulação do acto – obviando assim uma eventual manipulação de meios processuais – pode o tribunal contudo, neste conhecimento acidental, “pôr em causa os seus efeitos atípicos, complementares, futuros ou colaterais”.

É mister referir que este Professor elabora a sua posição raciocinando ainda no quadro do alegado “caso decidido” – posição já refutada – mas entendo, ainda assim, dela retirar algum conteúdo útil quanto ao efeito da sentença. Ao atingir com esta, nomeadamente, os efeitos futuros do acto ilegal, o Tribunal afasta qualquer dúvida acerca de uma eventual eficácia convalidatória decorrente da postergação dos prazos de impugnação contenciosa: ainda que fiquem solidificados os efeitos até aí produzidos – prestando homenagem ao valor da segurança jurídica – tal não invalida que o tribunal intervenha ulteriormente e afaste a eficácia do acto para o futuro, pondo assim termo a um facto complexo de lesão das posições subjectivas dos particulares. Obsta-se assim, que uma situação de contrariedade ao Direito se prolongue para o futuro ou mesmo ad aeternum.
Como reintegrar a esfera jurídica dos particulares lesados pela manutenção dos efeitos do acto ilegal?


1.       3.  A autonomização do pedido de indemnização

No plano substantivo, a norma do artgº. 38º/1 revela-se de importância primacial por proceder igualmente ao recorte funcional do pedido de indemnização e à sua autonomização em face dos demais, pondo termo a uma situação de disfunção legislativa herdada do Direito anterior – que fazia depender a existência do dever de indemnização, que impendia sobre as autoridades administrativas, da anterior propositura pelo particular lesado do recurso contencioso de anulação do acto administrativo ocasionado do dano (artgº. 7 D.L. 48 051). Em vez de o problema ser equacionado de uma lógica estritamente processualista – em que a impugnação contenciosa do acto administrativo danoso é um pressuposto da acção de responsabilidade civil pública – atende-se primacialmente agora a uma lógica substancialista, máxime desde que a Lei nº 67/2007 passou a dispor, no seu artgº. 4º que “quando o comportamento culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados, designadamente por não ter sido utilizado a via processual adequada à eliminação do acto jurídico lesivo, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e as consequências que delas tiverem resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida, ou mesmo excluída”.

O critério determinante é pois um juízo assente numa “concorrência de culpas” (RUI MEDEIROS), em que a conduta lesiva da Administração deve ser balanceada com a leveza e negligência processual do particular, cuja intensidade, maior ou menor, se repercutirá directamente no quantum indemnizatório devido pela Administração àquele (se houver lugar a indemnização).



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

VASCO PEREIRA DA SILVA, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", pág. 439 - 443; 552 - 555;

MARCELLO CAETANO, "Manual de Direito Administrativo", pág. 1368 - 1369;

CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "A Justiça Administrativa", pág. 180 e 198;

DIOGO FREITAS DO AMARAL, "Curso de Direito Administrativo", pág. 445 e 446


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