segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Like a fish in the sea: uma abordagem ao Direito Administrativo Global a partir do Atum

O artigo que nos propomos a desenvolver não tem pretensões de tratar exaustivamente a questão do Direito Administrativo Global: visa tão-só aflorar certos pontos com especial acuidade que, se por um lado corroboram a natureza administrativa deste novo ramo de Direito, por outro, levantam problemas autónomos, e que são aqui convocados por recurso ao caso “Southern Bluefin Tuna”.

1.      Sumário do caso

Em 1982, em função de pescas desenfreadas e da correspectiva diminuição de certas espécies dos mercados, foi celebrada a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS). Ao abrigo do art 64 da UNCLOS, os Estados Contratantes vinculam-se a estabelecer relações de cooperação com vista à conservação das espécies listadas no Anexo I, entre as quais figurava a do atum “Southern Bluefin”.
No seguimento da UNCLOS, em 1993, a Austrália, o Japão e a Nova Zelândia celebraram a Convenção de Conservação do Atum “Southern Bluefin” (CCSBT), que veio a criar uma Comissão cujas atribuições visavam assegurar o cumprimento da Convenção. A Comissão ficou responsável pela fixação das quotas de pesca de atum para os Estados signatários e de tomar as medidas necessárias para impedir a frustração dos objectivos da Convenção quer pelas partes contraentes ou quer por terceiros.
Em 1999, a Austrália e a Nova Zelândia interpuseram contra o Japão uma acção no tribunal arbitral competente, de acordo com a UNCLOS (ICSID – International Centre for Settlemnt of Investment Disputes), com fundamento na violação pelo Japão das quotas estabelecidas pela Comissão. Simultaneamente, os dois Estados propuseram outra acção requerendo uma providência cautelar, no tribunal competente nos termos das regras da CCSBT (ITLOS - Tribunal Internacional do Direito do Mar), para que o Japão fosse imediatamente precludido de continuar com os programas experimentais de pesca que carreava em contravenção das quotas fixadas.
O ITLOS emitiu sentença no sentido da obrigatoriedade das decisões da Comissão, determinando ainda que as partes seguissem para Negociação.
O ICSID, por sua vez, decidiu que não tinha jurisdição sobre o litígio uma vez que não havia  consentimento do Japão na apreciação pelo tribunal arbitral, o que era contrário às regras consagradas na CCSBT e revogou a decisão relativa à providência cautelar emitida pelo ICSID. Referiu, no entanto, que, não obstante a revogação da providência cautelar, as partes deveriam respeitar os efeitos da mesma e referiu as partes a nova negociação.
As negociações foram levadas a cabo com sucesso e em 2001 houve acordo no sentido de desenvolver um programa científico com vista a fazer a contagem do “stock” de atum.

2.      Análise do caso
O caso em apreço coloca questões a vários níveis: primeiramente, a decisão que está na origem do conflito parte da Comissão, uma entidade sui generis à luz do direito interno, e cuja natureza cabe indagar; é também questionável a relação que se estabelece entre os vários actores presentes no litígio e que não se reconduz às clássicas posições dos sujeitos nem de Direito Internacional nem do Direito Administrativo interno; a jusante, verifica-se a existência de órgãos jurisdicionais competentes para resolver um litígio e que não subsumem nas ordens dos tribunais nacionais; ora, qual o direito aplicável nestes tribunais? Quid iuris, quando há dois tribunais que reclamam competência sobre o litígio? Pode haver judicial review? Qual a exequibilidade das sentenças produzidas neste âmbito?

A Comissão corresponde a uma entidade com poderes executivos e regulatórios, responsável pela adopção de decisões sobre os standards da actividade piscatória. Nestes termos, surge como uma entidade criada por tratado - a CCSBT -, com personalidade jurídica, orçamento próprio, uma secretaria e cujas incumbências passam pelo trabalho consultivo e por garantir o estrito cumprimento da Convenção. Donde, tem amplos poderes para fixar as quotas piscatórias e para tomar as medidas idóneas à preclusão de pescas ilegais. A actuação da Comissão, ainda que primacialmente dirigida aos Estados, é-o também a entes privados – as “fishing entities”; e mais, a Comissão pode opor as suas decisões não apenas a quem por via da CCSBS estaria, desde logo, adstrito às suas decisões como a terceiros que possam potencialmente violar os objectivos por ela fixados. Assim sendo, estamos perante uma entidade que, se vista de um plano de direito interno, dúvidas não restariam quanto a classifica-la como administrativa, havendo que sublinhar a multiplicidade das vestes dos destinatários com quem se relaciona. Ora, a circunstância de o enquadramento deslocar a questão para uma dimensão supra-estatal não deve contribuir para que a relação perca essa natureza que em termos embrionários é administrativa.
A dimensão global das decisões em causa tem ínsita as dificuldades de regulação de matérias como o Direito do Mar, que transladam as balizas nacionais: é impossível controlar os fluxos migratórios do atum, donde uma actuação meramente localizada sai facilmente frustrada. Assim sendo, só a regulação global é capaz de dar cabal resposta aos problemas que estas matérias convocam.
Estabelecem-se, pois, entidades regulatórias globais com figurinos multifacetados e contornos híbridos e informais, que assumem as funções originalmente carreadas pelos Estados, sem que no entanto haja uma total independência face aos últimos. Ainda que após a criação das entidades se dê um destacamento e autonomização face aos Estados, verifica-se uma estreita coordenação com os mesmos, seja no momento da sua criação das entidades, seja para efeitos de tomada de decisão em que via mecanismos participativos. Não há, porém, uma relação hierárquica; trata-se antes de uma relação simbiótica e que tem tradução num processo de decisão conjunta. Para mais, dada a inexistência de um aparatus executivo, a implementação e exequibilidade das decisões a nível nacional dependem em larga medida da cooperação com os Estados. Daí que o princípio da separação de poderes não enforme as relações geradas no âmbito do DAG.
No entanto, se esse princípio não tem grande acolhimento na ordem global, a verdade é que os grandes direitos pilares do Direito Administrativo encontram aqui acolhimento: tratam-se do direito de participação e do direito à tutela jurisdicional efectiva. Quanto ao primeiro, cumpre apenas aludir à referência da participação dos Estados nos procedimentos conjuntos de decisão, e que envolve, muitas vezes, outras entidades interessadas como ONGs e privados. No que concerne ao segundo, reclama-se uma análise mais aprofundada.  
A jurisdicionalização do DAG encontra-se em desenvolvimento atento que, na maioria dos casos, são os próprios regimes regulatórios que preveem mecanismos de resolução dos litígios onde podem ser contestadas as disputas emergentes de decisões de entidades como a Comissão. Ainda que tribunais arbitrais, no caso sub judice, tanto o ICSID como o ITLOS são verdadeiros tribunais, sujeitos aos princípios do processo e que, por que destacados de quaisquer ordens nacionais, produzem sentenças envoltas em garantias acrescidas de imparcialidade e independência. Mas se assim o é, esta mesma circunstância imprime grandes dificuldades.
Nas acções trazidas ao ITLOS e ISCID levantaram-se as questões de saber qual seria a lei aplicável e qual o tribunal com jurisdição sobre o caso, visto que a Austrália, Nova Zelândia e o Japão eram signatários da CCSBT e do UNCLOS, donde, a circunstância de ser potencialmente aplicável uma duplicidade de regimes determinava que houvesse um conflito positivo de jurisdições, já que cada bloco legal apontava para tribunais diferentes.
No ITLOS, o Japão arguiu que, ao abrigo da UNCLOS, aquele tribunal arbitral não tinha jurisdição atenta a natureza não compulsória das obrigações emergentes da convenção e que só tendo por referência o disposto na CCSBT haveria fundamento para intentar a presente acção. Ora, esse facto influía directamente na questão da competência do tribunal, já que de acordo com a UNCLOS, a jurisdição do ITLOS estava circunscrita a questões relativas à interpretação e aplicação da UNCLOS. Se a questão caia sob alçada da CCSBT, apenas o ICSID era competente, donde a improcedência da acção por preterição de um pressuposto processual. Não obstante, o ITLOS considerou-se competente por a questão de direito se subsumir nos art 64, 116 e 119 da UNCLOS e deu provimento à providência cautelar.
Por sua vez, o ICSID considerou, tendo em vista a especialidade da CCSBT face à UNCLOS, que a decisão teria por fundamento esse corpo legal, ainda que isso não impedisse que actuação do Japão fosse simultaneamente contrária a ambas as convenções. No entanto, o tribunal considerou-se incompetente com base nas normas relativas à resolução de conflitos das convenções que determinavam a resolução pacífica, excluindo-se a natureza compulsória da arbitragem, salvo havendo acordo entre as partes. Donde, revogou a decisão relativa à providência cautelar, ainda que sublinhado a necessidade de as partes respeitarem as obrigações assumidas nos tratados e aconselhando-as a seguir para negociação.
Ora, em ambas as sentenças está subjacente a miríade de fontes normativas do DAG: há vários complexos de normas potencialmente aplicáveis e as relações que entre eles se estabelecem não se apresentam líquidas. Em resultado, temos duas decisões fundadas em duas convenções diferentes e que chegam a soluções opostas. Há apenas que concluir pela fragilidade do princípio da legalidade neste âmbito.
Mas verifica-se ainda um problema acrescido e que tem que ver com a possibilidade de judicial review. No caso, a questão não tem especial acuidade uma vez que a UNCLOS prevê que um qualquer tribunal possa revogar ou modificar as providências cautelares no âmbito de um litígio decidido pelo ITLOS. Mas, quid iuris, na ausência de uma norma equivalente? Os tribunais de direito global não estão estruturados numa lógica hierárquica semelhante aos órgãos jurisdicionais nacionais. Quem é o último decisor, sabendo-se que a possibilidade de recurso é corolário do princípio da tutela efectiva de direitos?
Uma última questão prenda-se com a exequibilidade das sentenças. Se é verdade que por força da Convenção de Nova Iorque as sentenças arbitrais beneficiam de um regime de reconhecimento superior face às sentenças dos tribunais de direito interno, a execução e efectividade das mesmas está inteiramente dependente da adopção voluntária dos Estados e demais destinatários. Volta-se neste âmbito a fazer-se sentir a falta de um aparelho executivo, ainda que dados empíricos corroborem o normal cumprimento das sentenças independentemente do elemento coercitivo, tal como no caso em análise.

3.      Conclusão

Os fenómenos de Governance supra-estatais ganham cada vez mais “terreno” perante a incapacidade e ineficiência de uma regulação parcelar de fenómenos plurilocalizados e potenciam a emergência de regimes e instituições moldáveis às nuances das matérias que são o seu objecto. 
No entanto, esta amálgama de normas e princípios apresenta contradições internas pela inexistência de centro único e convoca questões de legitimidade e de eventual ablação de direitos que no plano interno são tidos como fundamentais. 
O Direito Administrativo Global reclama uma maior permeabilidade a princípios como a legalidade, o Estado de Direito, a transparência e a obrigatoriedade de fundamentação, pois, em última análise, parece-nos que apenas pelo reforço de um núcleo duro de garantias administrativas, o DAG poderá compensar pelo deficit de coerência e pelas questões que ficam em aberto, à medida que se expande sem que haja uma entidade-mãe responsável pelos “checks and balances” da evolução deste novo ramo.

Bibiliografia:

CASESSE, Sabino, Administrative Law without the State? The challenge of global regulation, in http://www.iilj.org/gal/documents/administrativelawwithoutthestate.pdf

CAROTTI, Bruno e CONTICELLI, Martina, Settling global disputes: The Southern Bluefin Tuna Case, in Global Administrative Law – Cases, Materials, Issues, II Edition, 2008


Arbitral Tribunal constituted under Annex VII of the United Nations Convention on the Law of the Sea, Australia and New Zeland v. Japan, Award on Jurisdiction and Admissibility, in http://www.itlos.org/index.php?id=62




Sem comentários:

Enviar um comentário