Like a fish in the sea:
uma abordagem ao Direito Administrativo Global a partir do Atum
O artigo que nos
propomos a desenvolver não tem pretensões de tratar exaustivamente a questão do
Direito Administrativo Global: visa tão-só aflorar certos pontos com especial
acuidade que, se por um lado corroboram a natureza administrativa
deste novo ramo de Direito, por outro, levantam problemas autónomos, e que são
aqui convocados por recurso ao caso “Southern Bluefin Tuna”.
1.
Sumário
do caso
Em 1982, em função de
pescas desenfreadas e da correspectiva diminuição de certas espécies dos
mercados, foi celebrada a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS).
Ao abrigo do art 64 da UNCLOS, os Estados Contratantes vinculam-se a
estabelecer relações de cooperação com vista à conservação das espécies listadas
no Anexo I, entre as quais figurava a do atum “Southern Bluefin”.
No seguimento da
UNCLOS, em 1993, a Austrália, o Japão e a Nova Zelândia celebraram a Convenção
de Conservação do Atum “Southern Bluefin” (CCSBT), que veio a criar uma
Comissão cujas atribuições visavam assegurar o cumprimento da Convenção. A
Comissão ficou responsável pela fixação das quotas de pesca de atum para os
Estados signatários e de tomar as medidas necessárias para impedir a frustração dos
objectivos da Convenção quer pelas partes contraentes ou quer por terceiros.
Em 1999, a Austrália
e a Nova Zelândia interpuseram contra o Japão uma acção no tribunal arbitral
competente, de acordo com a UNCLOS (ICSID – International Centre for Settlemnt
of Investment Disputes), com fundamento na violação pelo Japão das quotas
estabelecidas pela Comissão. Simultaneamente, os dois Estados propuseram outra
acção requerendo uma providência cautelar, no tribunal competente nos termos
das regras da CCSBT (ITLOS - Tribunal Internacional do Direito do Mar), para que
o Japão fosse imediatamente precludido de continuar com os programas experimentais de pesca
que carreava em contravenção das quotas fixadas.
O ITLOS emitiu
sentença no sentido da obrigatoriedade das decisões da Comissão, determinando
ainda que as partes seguissem para Negociação.
O ICSID, por sua vez,
decidiu que não tinha jurisdição sobre o litígio uma vez que não havia consentimento do Japão na apreciação pelo tribunal arbitral, o que era
contrário às regras consagradas na CCSBT e revogou a decisão relativa à
providência cautelar emitida pelo ICSID. Referiu, no entanto, que, não obstante
a revogação da providência cautelar, as partes deveriam respeitar os efeitos da
mesma e referiu as partes a nova negociação.
As negociações foram levadas
a cabo com sucesso e em 2001 houve acordo no sentido de desenvolver um programa
científico com vista a fazer a contagem do “stock” de atum.
2.
Análise
do caso
O caso em apreço
coloca questões a vários níveis: primeiramente, a decisão que está na origem do
conflito parte da Comissão, uma entidade sui generis à luz do direito interno,
e cuja natureza cabe indagar; é também questionável a relação que se estabelece
entre os vários actores presentes no litígio e que não se reconduz às clássicas
posições dos sujeitos nem de Direito Internacional nem do Direito
Administrativo interno; a jusante, verifica-se a existência de órgãos jurisdicionais
competentes para resolver um litígio e que não subsumem nas ordens dos
tribunais nacionais; ora, qual o direito aplicável nestes tribunais? Quid iuris, quando há dois tribunais que
reclamam competência sobre o litígio? Pode haver judicial review? Qual a exequibilidade das sentenças produzidas
neste âmbito?
A Comissão
corresponde a uma entidade com poderes executivos e regulatórios, responsável pela
adopção de decisões sobre os standards da actividade piscatória. Nestes termos,
surge como uma entidade criada por tratado - a CCSBT -, com personalidade
jurídica, orçamento próprio, uma secretaria e cujas incumbências passam pelo
trabalho consultivo e por garantir o estrito cumprimento da Convenção. Donde,
tem amplos poderes para fixar as quotas piscatórias e para tomar as medidas
idóneas à preclusão de pescas ilegais. A actuação da Comissão, ainda que primacialmente
dirigida aos Estados, é-o também a entes privados – as “fishing entities”; e
mais, a Comissão pode opor as suas decisões não apenas a quem por via da CCSBS
estaria, desde logo, adstrito às suas decisões como a terceiros que possam
potencialmente violar os objectivos por ela fixados. Assim sendo, estamos
perante uma entidade que, se vista de um plano de direito interno, dúvidas não
restariam quanto a classifica-la como administrativa, havendo que sublinhar a
multiplicidade das vestes dos destinatários com quem se relaciona. Ora, a circunstância
de o enquadramento deslocar a questão para uma dimensão supra-estatal não deve contribuir
para que a relação perca essa natureza que em termos embrionários é administrativa.
A dimensão global das
decisões em causa tem ínsita as dificuldades de regulação de matérias como o
Direito do Mar, que transladam as balizas nacionais: é impossível controlar os
fluxos migratórios do atum, donde uma actuação meramente localizada sai
facilmente frustrada. Assim sendo, só a regulação global é capaz de dar cabal resposta
aos problemas que estas matérias convocam.
Estabelecem-se, pois,
entidades regulatórias globais com figurinos multifacetados e contornos
híbridos e informais, que assumem as funções originalmente carreadas pelos
Estados, sem que no entanto haja uma total independência face aos últimos. Ainda
que após a criação das entidades se dê um destacamento e autonomização face aos
Estados, verifica-se uma estreita coordenação com os mesmos, seja no momento da
sua criação das entidades, seja para efeitos de tomada de decisão em que via mecanismos
participativos. Não há, porém, uma relação hierárquica; trata-se antes de uma
relação simbiótica e que tem tradução num processo de decisão conjunta. Para
mais, dada a inexistência de um aparatus
executivo, a implementação e exequibilidade das decisões a nível nacional
dependem em larga medida da cooperação com os Estados. Daí que o princípio da separação
de poderes não enforme as relações geradas no âmbito do DAG.
No entanto, se esse
princípio não tem grande acolhimento na ordem global, a verdade é que os
grandes direitos pilares do Direito Administrativo encontram aqui acolhimento:
tratam-se do direito de participação e do direito à tutela jurisdicional
efectiva. Quanto ao primeiro, cumpre apenas aludir à referência da participação
dos Estados nos procedimentos conjuntos de decisão, e que envolve, muitas
vezes, outras entidades interessadas como ONGs e privados. No que concerne ao
segundo, reclama-se uma análise mais aprofundada.
A jurisdicionalização
do DAG encontra-se em desenvolvimento atento que, na maioria dos casos, são os
próprios regimes regulatórios que preveem mecanismos de resolução dos litígios onde
podem ser contestadas as disputas emergentes de decisões de entidades como a
Comissão. Ainda que tribunais arbitrais, no caso sub judice, tanto o ICSID como
o ITLOS são verdadeiros tribunais, sujeitos aos princípios do processo e que,
por que destacados de quaisquer ordens nacionais, produzem sentenças envoltas
em garantias acrescidas de imparcialidade e independência. Mas se assim o é,
esta mesma circunstância imprime grandes dificuldades.
Nas acções trazidas
ao ITLOS e ISCID levantaram-se as questões de saber qual seria a lei aplicável
e qual o tribunal com jurisdição sobre o caso, visto que a Austrália, Nova
Zelândia e o Japão eram signatários da CCSBT e do UNCLOS, donde, a
circunstância de ser potencialmente aplicável uma duplicidade de regimes determinava
que houvesse um conflito positivo de jurisdições, já que cada bloco legal
apontava para tribunais diferentes.
No ITLOS, o Japão
arguiu que, ao abrigo da UNCLOS, aquele tribunal arbitral não tinha jurisdição
atenta a natureza não compulsória das obrigações emergentes da convenção e que
só tendo por referência o disposto na CCSBT haveria fundamento para intentar a
presente acção. Ora, esse facto influía directamente na questão da competência
do tribunal, já que de acordo com a UNCLOS, a jurisdição do ITLOS estava
circunscrita a questões relativas à interpretação e aplicação da UNCLOS. Se a
questão caia sob alçada da CCSBT, apenas o ICSID era competente, donde a
improcedência da acção por preterição de um pressuposto processual. Não
obstante, o ITLOS considerou-se competente por a questão de direito se subsumir
nos art 64, 116 e 119 da UNCLOS e deu provimento à providência cautelar.
Por sua vez, o ICSID considerou,
tendo em vista a especialidade da CCSBT face à UNCLOS, que a decisão teria por fundamento
esse corpo legal, ainda que isso não impedisse que actuação do Japão fosse
simultaneamente contrária a ambas as convenções. No entanto, o tribunal considerou-se
incompetente com base nas normas relativas à resolução de conflitos das
convenções que determinavam a resolução pacífica, excluindo-se a natureza
compulsória da arbitragem, salvo havendo acordo entre as partes. Donde, revogou
a decisão relativa à providência cautelar, ainda que sublinhado a necessidade
de as partes respeitarem as obrigações assumidas nos tratados e aconselhando-as
a seguir para negociação.
Ora, em ambas as
sentenças está subjacente a miríade de fontes normativas do DAG: há vários complexos
de normas potencialmente aplicáveis e as relações que entre eles se estabelecem
não se apresentam líquidas. Em resultado, temos duas decisões fundadas em duas
convenções diferentes e que chegam a soluções opostas. Há apenas que concluir
pela fragilidade do princípio da legalidade neste âmbito.
Mas verifica-se ainda
um problema acrescido e que tem que ver com a possibilidade de judicial review. No caso, a questão não
tem especial acuidade uma vez que a UNCLOS prevê que um qualquer tribunal possa
revogar ou modificar as providências cautelares no âmbito de um litígio
decidido pelo ITLOS. Mas, quid iuris,
na ausência de uma norma equivalente? Os tribunais de direito global não estão
estruturados numa lógica hierárquica semelhante aos órgãos jurisdicionais
nacionais. Quem é o último decisor, sabendo-se que a possibilidade de recurso é
corolário do princípio da tutela efectiva de direitos?
Uma última questão prenda-se
com a exequibilidade das sentenças. Se é verdade que por força da Convenção de
Nova Iorque as sentenças arbitrais beneficiam de um regime de reconhecimento
superior face às sentenças dos tribunais de direito interno, a execução e
efectividade das mesmas está inteiramente dependente da adopção voluntária dos
Estados e demais destinatários. Volta-se neste âmbito a fazer-se sentir a falta
de um aparelho executivo, ainda que dados empíricos corroborem o normal cumprimento
das sentenças independentemente do elemento coercitivo, tal como no caso em
análise.
3.
Conclusão
Os fenómenos de
Governance supra-estatais ganham cada vez mais “terreno” perante a incapacidade
e ineficiência de uma regulação parcelar de fenómenos plurilocalizados e
potenciam a emergência de regimes e instituições moldáveis às nuances das matérias que são o seu objecto.
No entanto, esta amálgama de normas e princípios apresenta contradições
internas pela inexistência de centro único e convoca questões de legitimidade e
de eventual ablação de direitos que no plano interno são tidos como fundamentais.
O
Direito Administrativo Global reclama uma maior permeabilidade a princípios
como a legalidade, o Estado de Direito, a transparência e a obrigatoriedade de
fundamentação, pois, em última análise, parece-nos que apenas pelo reforço de um
núcleo duro de garantias administrativas, o DAG poderá compensar pelo deficit
de coerência e pelas questões que ficam em aberto, à medida que se expande sem
que haja uma entidade-mãe responsável pelos “checks and balances” da evolução
deste novo ramo.
Bibiliografia:
CASESSE,
Sabino, Administrative Law without the
State? The challenge of global regulation, in http://www.iilj.org/gal/documents/administrativelawwithoutthestate.pdf
CAROTTI,
Bruno e CONTICELLI, Martina, Settling global
disputes: The Southern Bluefin Tuna Case, in Global Administrative Law –
Cases, Materials, Issues, II Edition, 2008
International
Tribunal for the Law of the Sea, Southern Bluefin Tuna Cases, in https://icsid.worldbank.org/ICSID/FrontServlet?requestType=ICSIDPublicationsRH&actionVal=ViewAnnouncePDF&AnnouncementType=archive&AnnounceNo=7_10.pdf
Arbitral
Tribunal constituted under Annex VII of the United Nations Convention on the
Law of the Sea, Australia and New Zeland v. Japan, Award on Jurisdiction and
Admissibility, in http://www.itlos.org/index.php?id=62
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